segunda-feira, 1 de março de 2010

A Defunta.

Qual o sentimento que experimento ao dedilhar tais teclas?
Este, que sinto pulsar fortemente, que me faz ter ânsias...este me acompanha de longa data.
Ansioso como estou por contar-vos este ocorrido, ocorrido há algum tempo, ansioso com estou... Sinto como se meu peito fosse romper, apenas por um maior bombear de sangue para meu corpo. Apenas por uma batida mais forte, sinto arrebentando-me os músculos, as artérias... Sinto explodir as costelas.
Em verdade, nada é de extraordinário a história que vos transcrevo, em verdade é singela... Mas a ocasião em que me encontro, a busca em que me jogo pelas palavras corretas, me faz afobar o corpo, e, sobretudo a cabeça.


Há algum tempo, como já disse, levantei-me da cama... Levantei-me como quem busca uma bacia para o vômito, como o doente que busca fugir ao leito de morte... Levantei cambaleando. Sentia minha cabeça latejando, como se os ossos fossem explodir e voar em pedaços... Levantei-me buscando por um copo, e logo o enchi com conhaque... Conhaque, o amigo mais íntimo que um homem pode ter, e, no entanto tão fora de moda. Por isso me chamam antiquado.
Bebi-o, lentamente, degustando cada gole, sentindo o cheiro hora doce, hora amargo. Bebi-o ainda dois copos, e então resolvi por despertar interino.
Levantei-me e vaguei pelas dependências de minha casa, lugar velho, com uma ou outra parede manchada por uma maldita infiltração, o piso de madeira, madeira velha, que... Incrivelmente, não rangia.
A casa encontrava-se em tal estado, parecia-me que houvera sido o cenário de uma tourada, ou antes, de um pandemônio.
Sentei-me para cear, o café quente queimando minha boca, no entanto não podia deixar de sorver o amargo líquido. Comi alguma coisa velha que se encontrava no armário... O gosto velho e farinhento descendo por minha garganta me causou ânsias.
Saí de casa e pus-me a vagar pelas ruas da vizinhança, hora com um cigarro na boca, hora com um livreto nas mãos. Seguia como que buscando por alguém que devesse estar lá, às vezes dava meia volta só para poder andar a escura rua mais uma vez.
Numa dessas meias voltas foi que me dei com uma mulher, muito maquiada, roupa demasiado coloria, e cabelo mau penteado, de um loiro desbotado. Suas feições encovadas, e sua tez refletiam o seu estado de saúde, o brilho opaco de seus orbes meio que gritavam pela morte... Encarei-a durante certo tempo, acenei-lhe com a cabeça, e esta me sorriu. Seus dentes grandes e um tanto amarelados, me chamaram a atenção pela perfeição com que se encaixavam em seu maxilar, nenhum a disputar espaço com o outro, e, no entanto, todos tão unidos.
A mulher virou-se e pôs a caminhar lenta e gingadamente, tornou a cabeça para traz e me lançou um olhar convidativo, um sorriso que pretendia ser provocante nos lábios, e então continuou a sua dança até que chegou a uma esquina.
Segui-a por entre a noite, e entrei em sua casa. Casa?! Antes um barraco. A fachada, outrora branca e sem máculas, hoje caía em pedaços, deixando à mostra os ossos de barro do barraco, onde um buraco ou outro se avistava tampado por dentro da casa com uma tábua.
Entrei na "casa", a mulher me guiou até sua cama e se deitou. Sentei ao pé da cama e pus-me a cantarolar uma modinha.
__Pois bem, o que queres?
__Pois bem, o que você quer, em vista que me convidou a entrar em sua casa?
__Quero dinheiro para poder comprar um vestido de morta.
__Pois de morta?
__Sim, e por que não? Não sabes que daqui a algum tempo virei a morrer, e você também, assim como o prefeito e sua querida esposa?
__Bem o sei, mas me espanta que alguém que ainda vive pensa nas miudezas que virão após a morte.
__Bom, por minha vez me assusta que alguém deixe de querer preparar tudo para a sua partida. Pois bem, pergunto-lhe de novo... O que queres?
__Em visto que queres dinheiro, bom, pois o dar-te-ei.
__Sem nada em troca?
__Espera...
__Pois espero.
__Dar-lhe-ei o dinheiro de que necessitas para partir ao melhor estilo da moda, mas em troca dar-me-á uma noite.
__Pois é claro... É isso que tenho dado a todos os que aqui adentram... Estudantes, vigários, magistrados, professores, vagabundos, beatas... Pois sim, beatas. E era o que me encontrava pronta a lhe dar. O que perguntei é: O que queres que eu faça? Tens algum desejo em especial?
__Em verdade não, não venho para ver-te ridicularizada, amarrada, ou interpretando algum personagem... Quero apenas uma noite. Uma noite comum.
__Pois bem, acabemos de conversas...Deita-te aqui. Encontra-te mui desconfortável nesta posição, sentado ao pé da cama.
Em verdade amamo-nos... Vide que não faço o uso romântico da palavra. Se queres saber se senti desejo por seu corpo tísico, ou pela sua carne dura e sua pele mole, pelo seu tato frio, e pelo seu cheiro de suor seco ao pescoço...Sim, o senti. Agora, se achas que desejei tal corpo pela eternidade, se desejei cobrir-lho de pérolas... Encontra-te horrivelmente enganado.
Senti por ela o mesmo que sentia pelo ópio, o qual me acabava a vida... Não me importava a qualidade, ou em folha do que era enrolado, e sim me importava saciar de todo, ainda que momentaneamente, eu sei, me importava saciar de todo o desejo, que encontrava contido entre minhas pernas há alguns dias.
Fui embora logo após, prometendo que viria a sua casa na manhã seguinte para que saíssemos em busca do vestido com que faria a terrível e aguardada viagem, dei-lhe meu endereço, caso me demorasse, e então parti.
Ao chegar a minha casa, não dormi, pudera, havia acordado há uma hora e meia, no máximo. Pus-me a re-ler um antigo volume que tinha de A Dama das Camélias... Quantas bobagens encontravam-se cerradas por entre aquelas poeirentas páginas, quantas mentiras sobre o amor, e sobre o desejo encontrei logo no primeiro quarto do livro.
Ao findar de uma hora de leitura, levantei-me enfadado, ainda faltavam-se algumas horas para o sol nascer, e resolvi-me por sair em busca de um companheiro qualquer, junto de quem pudesse tornar-me uma vez mais ébrio de forma prazerosa.
Encontrei um pub qualquer, um amigo qualquer, de uma longa data qualquer... Pusemo-nos de imediato a beber da aguardente que lá havia... Bebemos durante algumas horas, e pusemo-nos a contar nossos causos... No fim da noite, quando já me encontrava enfadado, levantei-me e me pus a caminho de casa, pois mais uma vez tornava ao maldito lar de minhas mazelas.
Cochilei durante algumas horas, e ao acordar via que o sol já batia às nove horas, troquei-me a roupa, e me dirigi à casa da prostituta, sem antes amaciar meu estomago com qualquer velharia poeirenta que encontrasse no fundo do armário da cozinha... Pois foi assim que me pus a caminho à casa da velha tísica.
Ao chegar ao alpendre, sujo e esburacado, bati à porta da seca mulher que noite passada me atendera de forma tão prestativa. Uma mulher, ainda mais velha abriu-me a porta, assustado, ja ia tornar à minha casa, receoso de que fosse aquela anciã com quem me deitara na véspera. Já tornava o corpo ao caminho inverso, quando a velha me chamou.
__Por favor, venha cá moço. Por acaso procuras por Isabel?
__Não sei o nome de quem procuro, só sei que exerce o ofício da noite.
__Pois bem, é Isabel quem procuras.
__E ela se encontra?
__Encontra-se. Entre, por favor.
A velha disse isso baixando os olhos, com a voz triste, e então abriu a porta.
Guiou-me até a cama, Isabel encontrava-se deitada.
__Pois se ainda dormes, me retiro, não vejo prazer em acordá-la, ainda que para presentear-lhe com algo que mo tenha pedido.
__Pois não vês que Isabel não dorme?
__Pois não dorme?
__Não... Coitada, em verdade está morta.
__Morta?
__Creio-me que morreu ainda esta noite, pois sua boca encontra-se um pouco úmida, assim como seu sexo. Sabes o que isso quer dizer? Pois morreu logo após uma noite de trabalho.
Sentei-me novamente ao pé da cama, como na noite passada, e pus a acariciar-lhe o tornozelo... Voltei o rosto para a velha, de pé logo a porta do quarto e perguntei-lhe.
__Podes me fazer um favor?
__Primeiro diga qual, e então poderei responder-te.
__Poderia tirar as medidas dela, dos ombros, quadris, a altura, o busto, pulsos, enfim... Tirar todas as suas medidas?
__Sim, não seria trabalho, mas para que queres isto?
__Bom, preciso pagar uma dívida à defunta.
__Pois bem que lho faço. O senhor já ceou?
__Ainda não, em casa não senti vontade alguma, mas agora meu estomago me aperta... Acho que irei a uma casa de lanches qualquer e comerei qualquer coisa...volto em dois quartos de hora.
__Pois esquece. A cozinha é logo ali, tenho café novo e algumas broas de milho... Senta-te lá e come.
Sentindo-me contrariado, dirigi-me à cozinha, onde enojado não toquei uma xícara sequer, e nem ao menos degustei do farelo da broa amarelada.
Logo a velha apareceu na cozinha, e me entregou as medidas. Despedi-me dela, e fui ao alfaiate que mais me agradava na cidade.
Dei-lhe as medidas, e escolhi as cores e os tecidos, ditei-lhe o modelo, e o volume que desejava, em verdade inspirei-me nos modelos em alta na corte de Napoleón. Recomendei-lhe também muita pressa, o vestido precisava encontrar-se pronto ao fim da tarde.
Ao fim da tarde busquei-o, estava mui belo, dirigi-me para uma funerária, onde comprei um caixão velho e antiquado, não por isso menos belo. Findadas as compras, corri para a casa da defunta.
Vesti-a, antes tomando o cuidado de passar um pano úmido sobre sua pele para que não sujasse o veludo fino. Penteei seus cabelos, muitos dos quais se partiram na velha escova, e passei-lhe nos lábios uma borra de vinho barato, o mesmo que lhe passei nas maçãs do rosto.
Chamei um carro de aluguel qualquer, e tomei o cadáver à minha casa. Durante o trajeto, pude sentir uma vez mais o cheiro de seus cabelos e de seu pescoço, ambos já tão opacos pelo efeito do tempo. Acariciei-lhe os braços, os seios, as pernas magras... Tomei-a uma vez mais naquele mesmo lugar, sobre o sacolejar das rodas, amei-a uma vez mais... O gozo me surpreendera, fora tão menos prazeroso que o que tivera na véspera, mas tão mais lancinante...Inquietei-me.
Ao chegarmos a minha casa, depositei o corpo sobre minha cama, e lá o deixei... Quando já me encontrava cansado, deitei abraçado à imensa boneca, onde adormeci em sono profundo.
Acordei ao findar do dia, e vendo que as moscas já lhe pousavam na testa, resolvi que já era tempo de sepultá-la. Tomei o corpo ao caixão, tomando antes o cuidado de forrá-lo com lençóis de cetim, pois não tinha as flores mortuárias com que geralmente decoram-se caixões. Pus-me à cavar em meu jardim, o qual se encontrava aos fundos de minha velha casa, e quando a noite já se ia alta, tomei a cova como pronta, embora estivesse um tanto tosca...Que fazer?! Não encontraria mais forças para cavar e dar os últimos retoques de artista ao buraco mortuário.
Empurrei o caixão, com o máximo cuidado que pude, sobre a cova, e ao findar de alguns minutos de esforço, encontrava-o totalmente coberto. Sentindo o receio do esquecimento futuro, tomei uma muda de dama-da-noite que caía do muro vizinho e plantei-a sobre a cova... Pois bem, Isabel encontrava-se agora honrada, sepultada sobre o estandarte de seu ofício... Isabel, a mulher que sempre sentirei saudades.

Pois bem... Adverti-lhos de que não era excepcional o que me ocorrera, mas devo admitir que me baqueou duramente...Durante algumas semanas não pude mais sair de casa, me limitava a circular o jardim macabro...Meus esforços, em limitei apenas a tratar da planta-estandarte que encontrava-se cada vez mais forte, cada vez mais perfumosa...Pois bem, tendes, agora, minha história completamente lida.

-----ISSO QUE DA LER ALVARES DE AZEVEDO.

2 comentários:

Iris disse...

pedro, eu li (em tres sentadas, na verdade).
nao tenho vontade de comentar aqui.

saudade gorda. beijo.

Mariá Romano disse...

vou lhe dizer com carinho, o que queria dizer com raiva. não me faça sentir tanto sua falta de novo, quase tive um ataque ao ver seu orkut excluído, eu te amo muito, estou com muitas saudades.
Mariá